quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

Frederico Pedreira: Doze Passos Atrás [2]

ESTÁTUAS
Desde criança que cumprimento o meu pai
 e todos os meus tios com um beijo na cara.
Desde criança que me recordo do odor acre
das suas bocas, vindo do peru do Natal,
dos lagos de vinho tinto, do excesso de beijos.
É isto que sobretudo recordo: o excesso de beijos.

Não me parece agora justo pedir-lhes que
voltem alegremente ao que eram, ao teatro onde
faziam tilintar os talheres, as facas de trinchar,
aos seus modos de afagarem as barrigas,
à sua insistência em conversarem.

Por vezes, temo-os: são gestos apontando o vazio,
indefinidos no ar raro em que os deixei, debaixo
de uma chuva de gravilha. Mostram um sorriso
largo no rosto sem ter onde desembocar e aquele
doce modo de desacelerar a vida, permitindo-a
morrer devagarinho, como deve ser, em paz.

Frederico Pedreira, Doze Passos Atrás (Artefacto, 2013), p 53.